sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

ANALISE: Heavy Rain PS3


 
 
Já faz algum tempo que Hollywood se confunde com a indústria de games. Seja por conta das dezenas de adaptações de jogos que já foram para as telonas, seja pela abundância de títulos com narrativa cinematográfica, ritmo de videoclipe e efeitos especiais de arrasar. Não é para menos que este seja um caminho cada vez mais comum, que vem sendo tomado por muitas produtoras na hora da feitoria de seus games. Um exemplo recente de sucesso neste estilo é o aclamado Modern Warfare 2, que mais parece um filme moderno de conflito urbano do que um típico FPS. Isso se traduz não somente a partir da história, mas também em cortes de câmera, interpretação dos personagens por parte de dubladores e mocap e o roteiro bem amarrado, sempre com aquele final épico e, por algumas vezes, inesperado. Contudo, nem sempre estes games ''cinematográficos'' são voltados para o lado da ação e aventura. Outros tendem a seguir a linha de um thriller dramático.

David Cage é um dos produtores que é fã confesso deste gênero. Seus games sempre prezaram pelo drama, que, combinado com a tensão, personagens marcantes e uma história amarrada, é garantia de uma valiosa experiência. O designer, e diretor do estúdio Quantic Dream, foi o responsável por jogos como Omikron: Nomad Soul e Indigo Prophecy, tipos modernos de adventure que marcaram a época em que foram lançados por conta dos fatores já citados. Não é para menos que Cage tenha seguido a mesma linha em sua mais recente produção, com Heavy Rain.

Exclusivo do PlayStation 3, Heavy Rain foi anunciado de forma exótica, para dizer o mínimo. O título foi apresentado durante a E3 de 2006, quando o próprio David Cage apresentou um tipo de tech-demo chamada ''The Casting''. O vídeo, na verdade o motor gráfico do game rodando em tempo real, mostrava a atriz Aurélie Bancilhon realizando um teste para o papel de heroína do jogo. O fator mais interessante da prévia estava no forte conceito de emoção passado pela personagem, que, apesar dos belos gráficos, beirando real (para a época), continuava sendo uma entidade virtual e até robótica, com olhos ''mortos'', o que causava uma certa estranheza para quem assistia - um fenômeno conhecido como ''Uncanny Valley'', ou ''Vale Estranho''.

Ao observar o produto final, podemos dizer, com toda a certeza, que Heavy Rain evoluiu. Apesar de ainda manter certa quantidade da ''estranheza'' gerada pelo primeiro vídeo. Neste game, Cage amarra a história de quatro personagens principais, apresentando-os, desconstruindo-os e levando-os aos seus limites, com todos estes passos acompanhados por uma espécie de ''deus'', ou ''diretor'', que, no caso, é o jogador. Tenha em mente que Heavy Rain é uma espécie de filme interativo, ou, se preferir, seriado interativo, já que dura algumas boas horas a mais do que um filme de cinema. O game funciona como uma imensa cutscene, onde o jogador vai acompanhando a história dos personagens, um a um, enquanto decide o destino de cada um em cenas-chave, com ações que envolvem o esquema de quick time events, ou QTE.

O game nos presenteia com mais um cast de personagens memoráveis, cada com uma personalidade e problemas próprios. Normalmente, heróis de videogame (ou até anti-heróis) são apresentados como figuras perfeitas, fortes, poderosas, com muitas habilidades. Em Heavy Rain a coisa funciona um pouco diferente. David Cage se preocupou em humanizar os ''bonecos virtuais'' deste título, e não dizemos isso só pelo fato de cada um ser interpretado por um ator real, até bem parecidos com suas representações virtuais. Não, esta aproximação do game com ícones reais se dá por um fato muito comum na vida de todo ser humano: problemas.

Cada personagem possui sua própria mazela, seu próprio vício, esqueleto no armário, capaz de arruinar completamente uma pessoa a ponto de destruí-la na frente daqueles que ama. Neste esquema, temos o arquiteto Ethan Mars, que desenvolve problemas com sua família; a fotojornalista Madison Paige, que sofre de insônia e toma remédios; o agente do FBI Norman Jayden, viciado em uma certa substância, e o detetive particular Scott Shelby, que sofre de asma. Ainda que os problemas entre eles sejam relativamente diferentes, sendo alguns mais graves do que os outros, todos contribuem para diminuir a distância entre um humano real, o jogador, e os personagens, que passam a ser menos robóticos. É curioso notar ainda que a chuva pode ser considerada uma espécie de ''quinto personagem'', já que ela não para em momento algum durante o game, passando do prólogo.

Heavy Rain é uma produção meticulosa. Toda a sua história é apresentada em pequenas doses, mas que vão se tornando algo maior sem o jogador nem mesmo perceber. Podemos afirmar que Ethan é o personagem de mais destaque entre os quatro centrais - chamada ''Até onde você iria para salvar quem você ama?'' também sugere isto. É com ele que começamos a aventura, em sua belíssima casa de arquiteto, em uma espécie de tutorial dos comandos básicos. Com o tempo, acontecimentos levam o personagem a perder um dos filhos – Jason - em um fatídico acidente. Como desgraça pouca é bobagem, seu outro filho, Shaun, é raptado pelo Assassino do Origami, o nêmesis desta aventura. A partir daí, o game se desenvolve em torno de Ethan, com o caminho dos outros personagens se cruzando com o do arquiteto.

Apesar de todo este clima de filme dramático, Heavy Rain ainda é um jogo. Afinal, qual seria o motivo para ele estar rodando seu motor-gráfico em um PlayStation 3? Com isso, como dissemos, o jogador assume o papel de diretor, com controles precisos e totalmente baseados no sistema de QTE. Para quem não sabe do que se trata, o esquema de quick time events se baseia em comandos rápidos pelo controle para que o personagem execute uma tarefa completa em dados momentos. Todos os comandos lembram bastante o que foi visto em Indigo Prophecy, com uma adaptação aqui e outra ali. Para não atrapalhar a visão e não cortar a narrativa, todos os botões aparecem em branco na tela, bem disfarçados.

Há uma certa variação entre os botões, sendo a maioria deles executados a partir do analógico direito. Os botões principais, X, quadrado, triângulo e círculo, aparecem em cenas-chaves, quando precisam ser pressionados de acordo com o momento, seja rapidamente ou continuamente. A grande maioria corresponde bem ao que é visto na tela. Por exemplo, quando o personagem precisa fazer um esforço contínuo, de tensão, o jogador deverá segurar os botões na ordem que aparecerem e não soltá-los até sumirem. O resultado é mais ou menos como jogar ''Twister'' só com os dedos. Em outras ocasiões, os controles de movimento do SixAxis também são utilizados.

A movimentação dos personagens, nas poucas cenas onde isso será necessário, é feita a partir do R2, o que pode causar certa estranheza, a princípio, mas acostuma-se. Ao pressionar o botão, ele irá andar para frente, sendo possível direcioná-lo a partir do analógico esquerdo. Outra surpresa está no gatilho L2, que mostrará os pensamentos do personagem em determinado momento, que podem ser selecionados com os botões de face do controle, para serem detalhados em um monólogo. Isso funciona como uma dica do que fazer naquela cena, ou até mesmo como uma indicação do melhor caminho a ser seguido, em alguns casos. O L1, por sua vez, troca de câmera para se ter outro ângulo do momento. Com todo este esquema, o jogador irá vivenciar os momentos mais tensos das vidas dos personagens, que envolvem decisões sem volta, uma jogada de mestre em Heavy Rain.

Como dito por diversas vezes pela produção do título, será possível e, talvez, necessário, jogá-lo mais de uma vez para obter e conferir os mais diversos resultados. Obviamente, isso será mandatório para os que pretendem platinar o game, ou seja, conseguir todos os Troféus da PlayStation Network, que, aliás, são apresentados de forma ligeiramente diferente aqui. Você deverá cumprir as tarefas, que não são reveladas para não estragar as surpresas da trama, e eles serão destravados apenas ao final de um capítulo, tudo para não comprometer a experiência de acompanhar o enredo.

Além disso, as repetidas partidas funcionarão para conhecer outros caminhos, das possíveis dezenas oferecidas por Heavy Rain. No game, um sistema de save diferenciado fará com que não seja possível voltar atrás em nenhuma decisão para ver o que ocorreria se ela fosse diferente. Ao tomar determinado passo, o game será salvo disfarçadamente (note o pequeno ícone de um origami no canto da tela), impedindo retornar àquela cena naquele momento. Será possível, sim, retornar depois, selecionando para jogar um determinado capítulo novamente, mas tendo que repetir toda aquela sequência, e não uma parte singular.

Este sistema de decisões permanentes é uma das coisas mais legais encontradas no jogo, mas pode acabar funcionando como uma faca de dois gumes. Enquanto a maioria pode adorar, outras pessoas podem achar não muito gratificante jogar tudo de novo. Imagine que você irá terminar o jogo uma vez e já tomar conhecimento da identidade do assassino. Quando jogar novamente, já vai saber boa parte do enredo, o que vai diminuir um pouco da graça. Claro que muitos não se importarão, já que faz parte da diversão do jogo acompanhar a história toda de novo e ver onde vai dar cada decisão diferente que for tomada. Mas, ainda assim, outros se sentirão incomodados com esta ''falta de novidade'' em uma segunda jornada.

Outro destaque em Heavy Rain está em seu nível de tensão. Em Indigo Prophecy, cada personagem tinha uma barra que mostrava se ele estava feliz, ansioso, tenso, qualquer que fosse seu humor no momento. Aqui, isto não existe, mas nem é necessário, já que toda a tensão é transmitida ao jogador. De tanta ligação que é criada com os personagens, você vai se sentir triste a cada derrota e irá vibrar em cada vitória. Os momentos depressivos te causarão estranheza e os de tensão serão realmente tensos, a ponto de te deixar com os músculos esticados e os olhos grudados na tela, sem tirar por um segundo.

Todas estas qualidades só foram possíveis graças ao enredo muito bem conduzido pelo diretor David Cage e o roteiro feito por ele e sua equipe. Como falamos, cada personagem se liga ao outro em situações que colaboram para a boa qualidade da história, e cada um possui também uma motivação própria para se envolver no caso do Assassino do Origami. Além disso, apesar de remeter a um thriller de drama, para algumas pessoas o game pode lembrar seriados de TV, principalmente os policiais, que envolvam serial killers, como ''Millenium'', ''CSI'' e ''Dexter''.

Se na época de ''The Casting'' o game já demonstrava seu poderio gráfico, apresentando uma modelo quase humana, no produto final Heavy Rain não deixa a peteca cair em momento algum, e só melhora o trabalho já visto anteriormente. Graças a isso, tudo o que vemos é bem verossímil, desde personagens a cenários e objetos. A direção de arte acertou em cheio ao inserir poucos cenários muito coloridos, a exceção do prólogo, já que a ideia é passar a tristeza que o enredo trará ao jogador, com cenas embaçadas e escuras, mas não se preocupe, você não ficará às cegas.

Todos os personagens apresentam modelos muito bem desenvolvidos, condizentes com seus atores na vida real. Procure na internet por Sam Douglas e você verá sua semelhança com o personagem Scott Shelby. Ou arrisque Jacqui Ainsley e veja que ela é bem parecida com a fotógrafa Madison Paige. Vale também um destaque para os olhos de todos os personagens, ainda que não 100%, porém muito próximos de um humano real, principalmente nas telas de carregamento, onde podemos vê-los de perto. De resto, captura de movimentos, texturas de pele, modelagem, cabelos e pêlos faciais, gráficos que não serão facilmente esquecidos, e dificilmente criticados.

Normad Corbeil, compositor de alguns filmes franceses que também colaborou em séries de TV, como o remake de ''V'', é o responsável pela bela trilha sonora que acompanha os jogadores em todas as cenas. O tema principal do jogo é o grande destaque e passa a exata sensação que o título quer passar para quem acompanha toda aquela história. Nada muito épico, nada muito triste, mas completamente encaixado no contexto e bastante satisfatório. Ainda na parte sonora, o game apresenta dez idiomas para dublagem e 16 para legendas e menus. Para quem sabe inglês, isso não é tão necessário, mas é legal ter opções que incluem até polonês. Claro, há o português de Portugal, que por vezes acaba soando engraçado para nós, acostumados com o português daqui.

Como surpresas extras, há itens desbloqueáveis ao longo dos capítulos, como making-ofs e artworks. Além disso, para os mais atentos, existem referências aqui ou ali aos outros jogos de David Cage, principalmente Indigo Prophecy.

Além do possível problema em relação ao fator replay, alguns detalhes técnicos podem incomodar e atrapalhar as partidas dos jogadores. No campo da dublagem, os personagens estão com o lábio e gestos sincronizados para o inglês como padrão. Ao jogar em outro idioma, é possível encontrar discrepâncias entre o que sai da boca do modelo e o que é ouvido. Após o lançamento, alguns jogadores relataram problemas com travamentos e savegames envolvendo o título, mas que não foram presenciados em nossas sessões de jogo. Outros pequenos problemas envolvem questões técnicas, como poucas falhas de colisão entre polígonos. Felizmente, nada que vá tirar a concentração do jogador ou abafar o brilho que envolve este game.

Jogo-filme, filme-jogo, mais assiste do que joga. São várias as definições para Heavy Rain, que é a experiência interativa máxima criada por David Cage, responsável por outros grandes títulos, como Omikron e Indigo Prophecy. Graças ao grande nível de produção, e toda a meticulosidade que a envolveu, Heavy Rain se prova um título sem precedentes, que irá entreter por boas horas, principalmente para aqueles que quiserem seguir todos os possíveis caminhos, a partir de múltiplas escolhas que são oferecidas. Os gráficos são um grande destaque, mas, felizmente, o game não se sustenta apenas nisso, oferecendo ao jogador a história de quatro personagens que se envolvem em uma complexa trama de suspense e drama, e se aproximam cada vez mais de um ser humano real, por conta de suas imperfeições e tristezas. A Quantic Dream novamente nos surpreende e mostra que videogames já atingiram um novo nível há algum tempo, com um thriller que te fará as perguntas mais cabulosas e te dará algumas difíceis escolhas morais. Até onde você iria para salvar alguém que você ama? Nós fomos longe o suficiente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário